Há aves que vemos tantas vezes que começamos quase a considerá-las ruído: ignoramo-las, procuramos entre os seus bandos por uma espécie diferente, e ficamos desapontados quando os binóculos nos revelam que “era só um pardal”. Mas, talvez sejam merecedoras de mais da nossa atenção… afinal, o seu sucesso deve-se à sua versatilidade e adaptabilidade, à nossa ajuda (intencional ou não) ao longo dos séculos, e algumas poderão até já não ser tão comuns quanto parecem.

 

pardal Pexels Vladyslav

Pardal

 

A ligação entre pardais e pessoas é milenar. Segundo os registos fósseis, há cerca de 10 a 20 mil anos já existiam pardais muito semelhantes aos que hoje conhecemos. Estas aves terão começado a aproveitar-se da comida disponível em torno das povoações humanas, desde migalhas e restos das nossas refeições até aos grãos dos cereais que semeamos, o nosso sustento e o dos pardais tornaram-se inseparáveis. Uma associação que as pessoas nem sempre viram com bons olhos. No século XVIII, vários governantes europeus tentaram exterminar os pardais, que eram vistos como pestes que arruinavam as colheitas: nalgumas regiões da Rússia, por exemplo, havia direito a uma redução nos impostos consoante o número de cabeças de pardal apresentadas. Esta aversão teve o seu expoente máximo na China em meados do século XX, com uma perseguição ordenada por Mao Zedong, com consequências desastrosas (saiba tudo na Pardela n.º 60, pág. 30).

 

Apesar de nem sempre ser amado, o pardal (Passer domesticus) tornou-se de tal forma característico das nossas cidades, que, quando os europeus colonizaram a América do Norte, sentiram a falta deste pequeno pássaro acastanhado. No final do século XIX, Nicholas Pike soltou 16 pardais em Brooklyn: é possível que todos os pardais-comuns da América do Norte sejam descendentes destas aves. O que é certo é que a espécie proliferou de tal forma que é agora considerada invasora no continente, onde, nas zonas rurais, pode ameaçar as aves nativas. Foi também introduzida, por ação humana, noutros países do continente americano, de África e da Oceania, pelo que é hoje possível encontrar pardais em quase todo o mundo.

 

Parte do segredo do sucesso dos pardais está nos seus hábitos gregários. Viver em grupo não só ajuda a encontrar comida e evitar predadores, mas também tem vantagens especialmente importantes na “selva urbana”: vivendo em bandos, os pardais podem aprender uns com os outros, e até resolver problemas mais rapidamente. Cientistas na Hungria descobriram que um grupo de seis pardais é muito mais rápido do que um par a encontrar a forma de abrir um alimentador complexo.

 

Apesar de parecer que os pardais estão em todo o lado, sobretudo para quem vive na cidade, a verdade é que, em muitos países da Europa, já não há tantos pardais como antes. No Reino Unido, a população de pardal diminuiu 70% entre 1977 e 2016, e em Espanha sofreu um declínio de 21% em apenas 10 anos (entre 2008 e 2018). Em Portugal, com base nos dados do Censo de Aves Comuns, estimamos que nos últimos 12 a 18 anos a população de pardais tenha diminuído 10 a 20%.

pombo-doméstico Rita Ferreira / SPEA

Pombo-doméstico

 

É possível que o pombo (Columba livia) tenha sido a primeira ave alguma vez domesticada pelos humanos: há pombos representados em peças de arte de 4500 a.C. no atual Iraque.

 

Durante milhares de anos, os pombos foram um importante recurso alimentar, mas à medida que as civilizações humanas se transformaram, também o papel dos pombos se alterou. Na cultura ocidental do século XIX, a criação de pombos era um passatempo popular, com aficionados como Charles Darwin a criar dezenas de variedades, desde variações de cor a exemplares com espampanantes golas ou botas de penas. Embora a moda tenha passado, a criação de pombos não desapareceu.

 

Estas aves são navegadoras exímias: conseguem voar 2000 km de regresso a casa, mesmo depois de serem transportadas em isolamento, sem pistas visuais, olfativas ou magnéticas, enquanto os cientistas rodavam as suas gaiolas para não saberem em que direção iam. Não se sabe exatamente como o fazem, mas esta capacidade de orientação faz dos pombos excelentes mensageiros. Durante a I e II guerras mundiais, ambos os lados recorriam a milhares de pombos-correio como a forma mais rápida e eficaz de saber notícias das frentes de batalha, e hoje em dia a criação de pombos-de-corrida continua a mover adeptos por todo o mundo.

 

Pelo caminho, os descendentes de aves domesticadas espalharam-se pelas nossas cidades, tratando os prédios e demais construções urbanas como se fossem as falésias preferidas pelos seus “parentes selvagens”  (pombo-das-rochas). Séculos de adaptação às pessoas e aos ambientes urbanos tornaram-nos mestres em encontrar comida, de tal modo que a melhor forma de controlar as populações de pombos nas cidades é garantir que os desperdícios alimentares são devidamente selados.

 

PATO-REAL Mallard LeeJaffe (CC BY-NC SA 2.0)

Pato-real

 

Onde houver água e humanos, há patos-reais (Anas platyrhynchos). A capacidade de sobreviver em tudo o que sejam águas relativamente tranquilas, desde lagos a estuários, e de comer desde plantas e sementes a invertebrados, passando por tudo o que os humanos lhe quiserem dar, permitiu a esta espécie espalhar-se pelo hemisfério Norte.

 

A cabeça verde e o bico amarelo do macho de pato-real já se tornaram um símbolo dos patos: até o emoji para pato tem este aspeto na maior parte das plataformas digitais! Em parte, esta associação deve-se ao facto de que o pato-real é o antepassado de grande parte dos patos-domésticos.

 

Embora formem casais durante a época de reprodução, os machos de pato-real acasalam frequentemente não só com o seu par, mas com qualquer fêmea que esteja sozinha, inclusive de outras espécies. Por um lado, esta “promiscuidade” explica alguns dos patos que se veem e parecem um misto de pato-real com outra espécie: são mesmo híbridos. Por outro lado, o facto de os machos desta espécie serem reprodutores tão profícuos permite manter a diversidade (e consequente adaptabilidade) da espécie. No entanto, pode ser extenuante para as fêmeas, sobretudo em locais onde, graças às oferendas humanas, há grandes concentrações de patos-reais. Aliciados pela disponibilidade de alimento, os machos sem par permanecem no local, pois não precisam de dispersar em busca de comida. Quando as fêmeas saem do ninho por breves momentos para se alimentarem, estes machos solteiros copulam com elas à revelia, obrigando-as a um dispêndio de energia extra numa altura em que já estão enfraquecidas pela tarefa hercúlea de pôr mais de metade do seu peso em ovos no prazo de duas semanas.

 

Terminado o frenesim reprodutor, parece que os machos desaparecem. Na verdade, permanecem, mas menos espalhafatosos, tanto em comportamento como em aspeto. Como muitos outros patos, os machos de pato-real mudam as penas de voo todas de uma vez, ficando incapazes de voar durante cerca de uma semana, durante os meses de setembro/outubro. Para passarem mais despercebidos aos predadores neste período vulnerável, antes dessa muda das penas das asas trocam a colorida plumagem nupcial pela chamada plumagem de eclipse: tons acastanhados, mais inconspícuos, que durante umas semanas os tornam difíceis de distinguir das fêmeas.

 

gaivota de patas amarelas Will George (CC BY-NC 2.0)

Gaivotas

 

Com o aumento da disponibilidade de alimento devido às atividades humanas, talvez não seja de estranhar que as gaivotas tenham encontrado nos nossos prédios e cidades uma alternativa aos penhascos e ilhas que tradicionalmente ocupavam.

 

Em Portugal, os ambientes urbanos têm sido ocupados sobretudo pela gaivota-de-patas-amarelas (Larus michahellis), para a qual os telhados e terraços dos prédios são como ilhas de escarpas íngremes, muitas vezes rodeadas por um mar de comida. Nesta primavera, desafiámos os portugueses a contar as gaivotas que faziam o ninho nas suas cidades. Juntamente com o Censo Nacional de gaivota-de-patas-amarelas, esses dados permitem-nos afirmar que existem atualmente cerca de 2000 casais desta espécie a viver em ambientes urbanos no nosso país.

 

A facilidade com que as gaivotas se instalam nas cidades é prova da sua versatilidade. Os seus cérebros grandes permitem-lhes adaptar-se facilmente aos desafios dos ambientes urbanos. Estas aves parecem ser extremamente inteligentes: há relatos de que largam conchas em rochas para as partir, para chegarem ao apetitoso interior, e de que “pescam”, usando pedaços de pão como isco para atrair peixes até à superfície da água.

 

Por outro lado, o olfato apurado que as ajuda a orientar-se durante a migração (saiba mais na Pardela n.º 62, pág. 21) também as ajuda a encontrar novas fontes de comida nos ambientes urbanos. De facto, são tão boas a encontrar comida, que investigadores em Espanha sugeriram que, para detetar depósitos ilegais de lixo, as autoridades poderiam seguir os movimentos das gaivotas.

 

Pais cuidadosos, as gaivotas defendem acerrimamente os seus ninhos, com gritos e ataques a pique que muitas vezes incomodam as pessoas. Mas será que temos direito a reclamar? Afinal, se somos nós que lhes damos comida fácil em terra, talvez o problema (a existir) não sejam elas.

 

Da próxima vez que vir uma destas aves, não passe à frente. Pare para apreciar a ingenuidade que lhes permitiu não só sobreviver mas proliferar ao nosso lado.

 

 

Este artigo foi publicado na revista Pardela nº63 (Outono/Inverno 2021)